Jogos vorazes - A esperança Capítulo 2
Jogos vorazes - A esperança
Capítulo 2
Existem aerobarcos da Capital voando para nos atacar no céu? Enquanto viajamos de volta ao Distrito 13, procuro ansiosamente por sinais de um ataque, mas nada nos persegue. Após vários minutos, quando ouço um intercâmbio entre Plutarco e o piloto, confirmando que o espaço aéreo está limpo, começo a relaxar um pouco.
Gale assente para os uivos vindos da minha mochila de caça.
— Agora eu sei por que você tinha que voltar.
— Se houvesse mesmo a possibilidade de sua recuperação.
Despejo a mochila em um banco, onde a criatura repugnante começa um rosnado baixo e profundo da garganta.
— Oh, cale a boca — falo para o saco enquanto afundo no assento acolchoado da janela atrás dele.
Gale se senta ao meu lado.
— Muito ruim lá embaixo?
— Não poderia estar muito pior — respondo.
Eu olho nos olhos dele e vejo a minha própria dor refletida ali. Nossas mãos se encontram, se apegam em uma parte do 12 que o Snow falhou em destruir.
Sentamos em silêncio no resto da viagem para o 13, que leva apenas cerca de 45 minutos. Uma mera viagem de uma semana a pé. Bonnie e Twill, as refugiadas do Distrito 8 que eu encontrei na floresta no inverno passado, não estavam tão longe do seu destino, afinal. Elas aparentemente não o percorreram, no entanto. Quando perguntei sobre elas no 13, ninguém parecia saber de quem eu estava falando. Morreram na floresta, imagino.
Do ar, o 13 parece ser tão alegre como 12. O entulho não está fumegante da forma como a Capital mostra na televisão, mas não há quase nenhuma vida acima da terra. Nos 75 anos desde os Dias Negros – quando foi dito que o 13 foi destruído na guerra entre a Capital e os distritos – quase todas as novas construções eram abaixo da terra.
Já havia uma importante instalação subterrânea por aqui, desenvolvida ao longo dos séculos para ser um refúgio clandestino para os líderes do governo em tempos de guerra ou um último recurso para a humanidade caso viver em cima se tornasse insuportável. O mais importante para as pessoas do 13 era o centro do programa nuclear da Capital para desenvolvimento de armas. Durante os Dias Negros, os rebeldes no 13 forçaram o controle das forças governamentais, testaram seus mísseis nucleares na Capital, e depois chegaram a um acordo: eles iriam fingir estar mortos em troca de serem deixados sozinhos.
A Capital tinha outro arsenal nuclear no oeste, mas não poderia atacar o 13 sem uma invencível retaliação. Foram forçados a aceitar as ofertas do 13. A Capital destruiu o que permaneceu visível da área e cortou todos os acessos para o exterior. Talvez os líderes da Capital pensassem que, sem ajuda, o 13 morreria por conta própria. Ele quase morreu algumas vezes, mas sempre conseguiu superar devido à partilha rigorosa dos recursos, a disciplina árdua e constante vigilância contra quaisquer novos ataques da Capital.
Agora, os cidadãos vivem quase que exclusivamente no subsolo. Você pode ir lá fora para exercícios e para a luz solar, mas apenas em momentos muito específicos na sua programação. Você não pode perder sua programação. Todas as manhãs, deve manter o seu braço direito numa geringonça na parede. É tatuado no interior do seu antebraço a sua programação para o dia em uma tinta roxa doentia.
07:00 - Café da manhã. 7:30 - Deveres na cozinha. 8:30 - Centro de Educação, Sala 17. E assim em diante. A tinta não sai até às 22:00 - Banho. É quando o que a mantém quebra a resistência à água e lavamos programação inteira fora. O toque de recolher às 22:30 é sinal que todos que não estão no turno da noite devem ir para a cama.
No início, quando eu estava tão mal no hospital, eu poderia renunciar a ser impressa. Mas uma vez que me mudei para o Compartimento 307 com minha mãe e irmã, esperava-se que eu começasse com o programa. Exceto para aparecer para as refeições, porém, eu praticamente ignoro as palavras no meu braço. Apenas volto ao nosso compartimento, ando pelo 13 ou durmo em algum lugar escondido. Um duto de ar abandonado. Atrás dos canos de água na lavanderia. Existe um armário no Centro de Educação que é grande porque ninguém parece precisar de material escolar. Eles são tão econômicos com as coisas aqui, o desperdício é praticamente uma atividade criminosa.
Felizmente, as pessoas do 12 nunca foram esbanjadoras. Mas uma vez eu vi Fulvia Cardew amassar uma folha de papel com apenas um par de palavras escritas sobre ela e você teria pensado que ela tinha matado alguém por causa da aparência que ela ficou. Seu rosto ficou vermelho como tomates, fazendo com que as flores de prata incrustadas nas bochechas gordas ficassem ainda mais perceptíveis. O verdadeiro retrato do excesso. Um dos meus poucos prazeres no 13 é assistir um punhado de “rebeldes” mimados da Capital se contorcendo enquanto eles tentam se adaptar aqui.
Não sei quanto tempo vou ser capaz de fugir com o meu completo desprezo pela pontualidade de presença exigida pelos meus anfitriões. Agora, eles me deixam sozinha porque eu estou classificada como mentalmente desorientada – diz isso bem na minha pulseira médica de plástico – e todo mundo tem que tolerar minhas divagações. Mas isso não pode durar para sempre. Nem pode durar sua paciência com a questão do Mockingjay.
Na pista de aterrissagem, Gale e eu andamos por uma série de escadas para o compartimento 307. Poderíamos pegar o elevador, só que me lembra muito o que me levantou para a arena. Estou tendo dificuldade em me ajustar com o subterrâneo. Mas depois do encontro surreal com a rosa, pela primeira vez, a descida faz-me sentir mais segura.
Eu hesitei na porta marcada 307, antecipando as perguntas da minha família.
— O que vou dizer-lhes sobre o Doze? — pergunto a Gale.
— Eu duvido que elas peçam detalhes. Elas o viram queimar. Vão estar preocupadas principalmente sobre como você está lidando com isso — Gale toca minha bochecha.— Tal como eu estou.
Eu pressiono o meu rosto contra a sua mão por um momento.
— Eu vou sobreviver.
Então eu respiro fundo e abro a porta. Minha mãe e minha irmã estão em casa para18:00 - Reflexão, meia hora de tempo de inatividade antes do jantar. Vejo a preocupação em seus rostos enquanto elas tentam medir o meu estado emocional.
Antes que alguém possa perguntar qualquer coisa, jogo minha mochila de caça e torna-se 18:00 - Adoração do Gato. Prim apenas se senta no chão chorando e balançando o terrível Buttercup, que interrompe o seu ronronar apenas para um ocasional silvo para mim. Ele me dá um olhar particularmente orgulhoso quando ela amarra a fita azul em volta do seu pescoço.
Minha mãe abraça a foto do casamento firmemente contra seu peito e depois a coloca, juntamente com o livro de plantas, em nossa gaveta emitida pelo governo. Eu penduro o casaco de meu pai no encosto de uma cadeira. Por um momento, o lugar parece quase como em casa. Então acho que a viagem ao 12 não foi um completo desperdício.
Nós estamos descendo para o refeitório para 18:30 - Jantar, quando o comunicador de Gale começa a apitar. Parece um relógio de grandes dimensões, mas ele recebe mensagens impressas. Receber um comunicador é um privilégio especial que é reservado para aqueles que são importantes para a causa, status que Gale alcançou por seu resgate dos cidadãos do 12.
— Eles precisam de nós dois no Comando — ele anuncia.
Rastejando alguns passos atrás de Gale, tento me recompor antes de eu ser jogada para o que é certo ser outra sessão Mockingjay implacável.
Permaneço na entrada do Comando, a alta tecnologia da sala do conselho de reunião de guerra é completa com computadores falando nas paredes, mapas eletrônicos que mostram os movimentos de tropas em diversos Distritos e uma grande mesa retangular, com painéis de controle que eu não deveria tocar. Ninguém me nota, porém, porque eles estão todos reunidos em uma tela de televisão no final da sala na qual vai ao ar a transmissão da Capital sobre o relógio.
Estou pensando que eu poderia ser capaz de escapar, quando Plutarco, cuja ampla forma física bloqueou a televisão, avista-me e abana com urgência para me juntar a eles. Relutantemente, me movo para a frente, tentando imaginar como poderia ser de interesse para mim. É sempre o mesmo. Filmagem de guerra. Propaganda. Repetição dos atentados ao Distrito 12. Uma mensagem ameaçadora do Presidente Snow. Então, é quase divertido ver Caesar Flickerman, o eterno anfitrião dos Jogos Vorazes, com o rosto pintado e terno brilhante, se preparando para fazer uma entrevista. Até que a câmera se afasta e eu vejo que seu convidado é Peeta.
Um som me escapa. A mesma combinação de suspiro e gemido que vem de ser submerso em água, privado de oxigênio até o ponto da dor. Eu empurro as pessoas de lado até que eu esteja na frente dele, minha mão pousada sobre a tela. Procuro seus olhos para qualquer sinal de dor, qualquer reflexo da agonia, da tortura. Não há nada. Peeta parece saudável ao ponto da robustez. Sua pele está brilhante, impecável, nesse acabamento encorpado. Sua maneira de compor, séria. Eu não consigo conciliar esta imagem com o garoto agredido, sangrando que assombra os meus sonhos.
Caesar se estabelece mais confortavelmente na cadeira em frente à Peeta e dá-lhe um longo olhar.
— Então... Peeta... bem-vindo.
Peeta sorri ligeiramente.
— Aposto que você pensou que tinha feito a sua última entrevista comigo, Caesar.
— Confesso que eu pensei — conta Caesar. — Na noite antes do Massacre Quaternário... bem, quem nunca pensou que não iria vê-lo novamente?
— Não fazia parte do meu plano, isso é certo — Peeta responde com uma carranca.
Caesar se inclina para ele um pouco.
— Acho que ficou claro para todos nós o que seu plano era. Sacrificar-se na arena, para que Katniss Everdeen e seu filho pudessem sobreviver.
— Era isso. Claro e simples. — Os dedos de Peeta traçam o padrão do estofado no braço da cadeira. — Mas outras pessoas tinham planos também.
Sim, outras pessoas tinham planos, eu penso. Peeta adivinhou, então, como os rebeldes nos utilizaram como peões? Como o meu resgate foi organizado desde o início? E, finalmente, como o nosso mentor, Haymitch Abernathy, nos traiu para uma causa que ele fingiu não ter interesse?
No silêncio que se segue, percebo as linhas que se formaram entre as sobrancelhas de Peeta. Ele adivinhou ou disseram a ele. Mas a Capital não o matou nem o castigou. Por certo agora, isso ultrapassou minhas maiores esperanças. Eu ouço em sua totalidade, a solidez de seu corpo e mente. Ele está funcionando para mim como a morfina que eles me deram no hospital para entorpecer a dor da semana passada.
— Por que você não nos conta sobre a última noite na arena? — Sugere Caesar. —Ajude-nos a classificar algumas coisas.
Peeta assente, mas leva o seu tempo falando.
— A última noite... para falar sobre essa última noite... bem, antes de tudo, você tem que imaginar como se sentiria na arena. Era como ser um inseto preso debaixo de uma vasilha cheia de vapor de ar. E tudo ao seu redor, selva... verde e viva e tiquetaqueando. Esse relógio gigante tiquetaqueando a sua vida. A cada hora, prometendo algum novo horror. Você tem que imaginar que nos últimos dois dias, dezesseis pessoas morreram – algumas delas defendendo você. No ritmo em que as coisas estavam indo, os oito últimos seriam mortos pela manhã. Salvo um. O vitorioso. E seu plano é que ele não vai ser você.
Meu corpo explode em suor com a memória. Minha mão desliza para baixo da tela e se pendura ao meu lado. Peeta não precisa de um pincel para pintar as imagens dos Jogos. Ele funciona tão bem com palavras.
— Uma vez que você está na arena, o resto do mundo torna-se muito distante — ele continua. — Todas as pessoas e coisas que você amou ou se preocupava quase deixaram de existir. O céu cor de rosa, os monstros da selva e os tributos que querem seu sangue se tornam sua realidade final, a única que sempre importou. Tão mau quanto isso te faz sentir, você vai ter que matar alguns, porque na arena, você tem apenas um desejo. E é muito caro.
— Custa a sua vida — Caesar concorda.
— Oh, não. Custa muito mais do que a sua vida. Matar pessoas inocentes? — Diz Peeta. — Custa tudo o que você é.
— Tudo o que você é — Caesar repete baixinho.
Um silêncio caiu sobre a sala, e eu posso senti-lo se espalhando por Panem. Uma nação se inclinando em direção às suas telas. Porque ninguém nunca antes falou sobre como é realmente a arena.
Peeta continua.
— Então, você se agarra ao seu desejo. E na última noite, sim, o meu desejo era salvar Katniss. Mas, mesmo sem saber sobre os rebeldes, que não se sentiam bem. Tudo era muito complicado. Eu me encontrei lamentando por não ter fugido com ela no começo do dia, como ela tinha sugerido. Mas não saí com ela naquele momento.
— Você estava muito preso no plano de Beetee para eletrificar o lago de sal — conta César.
— Muito ocupado com os outros jogadores aliados. Eu nunca deveria tê-los deixado nos separar! — Peeta explode. — Foi quando eu a perdi.
— Quando você ficou na árvore do relâmpago, e ela e Johanna Mason levaram a bobina de fio para a água — Caesar esclarece.
— Eu não queria! — Peeta fica vermelho de agitação — mas eu não podia discutir com Beetee sem indicar que estávamos prestes a romper com a aliança. Quando o fio foi cortado, tudo foi apenas loucura. Só me lembro de partes. Tentando encontrá-la. Assistindo Brutus matar Chaff. Matando Brutus sozinho. Eu sei que ela estava chamando meu nome. Então, o raio atingiu a árvore, e o campo de força em torno da arena... explodiu.
— Katniss o explodiu, Peeta — conta César. — Você já viu a filmagem.
— Ela não sabia o que estava fazendo. Nenhum de nós poderia seguir o plano de Beetee. Você pode vê-la tentando descobrir o que fazer com o fio — Peeta responde.
— Tudo bem. Só parece suspeito — Caesar rebate. — Como se ela fizesse parte do plano dos rebeldes o tempo todo.
Peeta fica de pé, inclinando-se para enfrentar Caesar, mãos segurando os braços de sua cadeira de entrevistador.
— Sério? E foi parte de seus planos que Johanna quase a matasse? Que o choque elétrico a paralisasse? Que a bomba acionasse? — Ele está gritando agora. — Ela não sabia, Caesar! Nenhum de nós sabia nada, exceto que estávamos tentando manter-nos mutuamente vivos.
Caesar coloca a mão no peito de Peeta em um gesto que é tanto de autoproteção como conciliador.
— Ok, Peeta, eu acredito em você.
— Ok.
Peeta retira as mãos de Caesar, levantando suas próprias mãos e correndo-as pelos seus cabelos, seus desordenados cuidadosamente decorados cachos loiros. Ele afunda na cadeira, perturbado.
Caesar espera um momento, estudando Peeta.
— E quanto ao seu mentor, Haymitch Abernathy?
O rosto de Peeta endurece.
— Eu não sei o que Haymitch sabia.
— Poderia ter feito parte da conspiração? — Caesar interroga.
— Ele nunca mencionou isso.
Caesar pressiona adiante.
— O que seu coração lhe diz?
— Que eu não deveria ter confiado nele — diz Peeta. — Isso é tudo.
Eu não vi Haymitch desde que o ataquei no aerobarco, deixando longas marcas de arranhão pelo seu rosto. Eu sei que foi ruim para ele aqui. Distrito 13 proíbe estritamente qualquer produção ou consumo de bebidas alcoólicas, e até mesmo o estoque de álcool no hospital é mantido a sete chaves. Finalmente, Haymitch está sendo forçado à sobriedade, sem esconderijos secretos ou misturas caseiras para facilitar a sua transição. Deixaram-no em isolamento até que ele secou, como se ele não fosse considerado apto para exibição pública. Deve ser torturante, mas eu perdi toda a minha simpatia por Haymitch quando percebi que ele tinha nos enganado. Espero que ele esteja assistindo a transmissão da Capital agora, para que ele possa ver que Peeta o rejeitou também.
Caesar dá um tapinha no ombro do Peeta.
— Nós podemos parar agora, se quiser.
— Havia mais para discutir? — Peeta rebate ironicamente.
— Eu ia perguntar a sua opinião sobre a guerra, mas se você estiver muito chateado...— começa Caesar.
— Oh, eu não estou muito chateado para responder a isso. — Peeta respira fundo e olha diretamente para a câmera. — Eu quero todo mundo observando, quer esteja na Capital ou no lado dos rebeldes, para parar por um momento e pensar no que poderia significar essa guerra. Para os seres humanos. Nós quase fomos extintos lutando entre si antes. Agora os nossos números são ainda menores. As nossas condições mais atenuantes. É realmente o que queremos fazer? Matar-nos completamente? Na esperança de que... o quê? Alguma espécie decente herde os resíduos fumegantes da Terra?
— Eu realmente não... Eu não tenho certeza que estou seguindo... — diz Caesar.
— Não podemos lutar entre si, Caesar — Peeta explica. — Não haverá número suficiente de nós restante para continuar. Se todos não depuserem as armas, eu quero dizer, brevemente tudo estará acabado, de qualquer maneira.
— Então... você está pedindo um cessar-fogo? — Caesar pergunta.
— Sim. Eu estou pedindo por um cessar-fogo — Peeta fala cansado. — Agora, por que não pedimos ao guarda para me levar de volta ao meu quarto para que eu possa construir mais cem castelos de cartas?
Caesar vira para a câmera.
— Tudo bem. Eu acho isso conclui tudo. Então, de volta à nossa programação regular.
Música toca, e então há uma mulher lendo uma lista de faltas previstas na Capital – frutas frescas, baterias solares, sabonetes.
Eu a vejo sem prestar atenção, porque sei que todos estarão esperando pela minha reação à entrevista. Mas não há nenhuma maneira de que eu possa processá-la tão rapidamente, a alegria de ver Peeta vivo e ileso, sua defesa da minha inocência em colaborar com os rebeldes e sua cumplicidade inegável com a Capital, agora que ele pediu por um cessar-fogo.
Ah, ele fez soar como se estivesse condenando ambos os lados da guerra. Mas neste momento, com apenas pequenas vitórias para os rebeldes, um cessar-fogo só poderia resultar em um retorno ao nosso estado anterior. Ou pior.
Atrás de mim, posso ouvir as acusações contra a construção de Peeta. As palavrastraidor, mentiroso e inimigo quicam pelas paredes. Desde que eu não posso nem participar da indignação dos rebeldes, nem contra ela, decido que a melhor coisa a fazer é sair. Quando chego à porta, a voz de Coin diz acima das outras.
— Você não foi dispensada, soldado Everdeen.
Um dos homens de Coin coloca uma mão no meu braço. Não é um movimento agressivo, realmente, mas depois da arena, eu reajo defensivamente a qualquer toque estranho. Eu liberto meu braço idiota e corro pelos corredores. Atrás de mim, há o som de uma briga, mas eu não paro. Minha mente faz um inventário rápido dos meus poucos estranhos esconderijos, e eu acabo no almoxarifado, enrolada contra uma caixa de giz.
— Você está vivo — eu sussurro, pressionando as palmas das mãos contra o meu rosto, sentindo o sorriso que é tão amplo que deve parecer uma careta.
Peeta está vivo. E é um traidor. Mas no momento, eu não me importo. Não é o que ele diz, ou quem diz que é, apenas que ele ainda é capaz de falar.
Depois de um tempo, a porta se abre e alguém escorrega para dentro. Gale desliza para baixo ao meu lado, seu sangue escorrendo do nariz.
— O que aconteceu? — pergunto.
— Eu fiquei no caminho de Boggs — ele responde com um encolher de ombros.
Eu uso minha manga para limpar o seu nariz.
— Cuidado!
Eu tento ser gentil. Afagando, não limpando.
— Qual é ele?
— Oh, você sabe. O lacaio mão-direita de Coin. O único que tentou detê-la. — Ele empurra a minha mão. — Desista! Você vai me fazer sangrar até a morte.
A gota se transformou em um fluxo constante. Eu desisto das tentativas de primeiros socorros.
— Você lutou com Boggs?
— Não, só bloqueei a porta quando ele tentou segui-la. Seu cotovelo me pegou no nariz — diz Gale.
— Eles provavelmente vão puni-lo.
— Já puniram.
Ele levanta sua mão. Eu fico olhando para ele sem compreender.
— Coin tomou de volta o meu comunicador.
Eu mordo meu lábio, tentando manter-me séria. Mas isso parece tão ridículo.
— Lamento, soldado Gale Hawthorne.
— Não lamente, soldado Katniss Everdeen. — Ele sorri. — Eu me sentia como um idiota andando com ele de qualquer maneira.
Nós dois começamos a rir.
— Eu acho que foi uma despromoção.
Esta é uma das poucas coisas boas sobre o 13. Obter Gale de volta. Quando a pressão do casamento que a Capital arranjou entre Peeta e eu passou, conseguimos recuperar a nossa amizade. Ele não seguiu adiante, tentando me beijar ou falar de amor. Ou eu tenho estado muito doente, ou ele está disposto a me dar espaço, ou ele sabe que é muito cruel com Peeta nas mãos da Capital. Seja qual for o caso, eu tenho alguém para contar meus segredos de novo.
— Quem são essas pessoas? — pergunto.
— Eles são nós. Se tivéssemos armas nucleares, em vez de uns poucos pedaços de carvão — ele responde.
— Eu gosto de pensar que o Doze não teria abandonado o resto dos rebeldes de volta aos Dias Negros.
— Poderíamos ter. Se fosse assim, renunciar ou começar uma guerra nuclear — diz Gale. — De certa forma, é notável que eles tenham sobrevivido a tudo.
Talvez seja porque eu ainda tenho as cinzas do meu próprio Distrito em meus sapatos, mas pela primeira vez, dou às pessoas do 13 algo que eu retive delas: crédito. Por permanecerem vivos contra todas as probabilidades. Seus primeiros anos de vida devem ter sido terríveis, amontoados nas câmaras abaixo da terra após a sua cidade ser bombardeada até o pó. População dizimada, nenhum possível aliado a quem recorrer por ajuda.
Nos últimos 75 anos, eles aprenderam a ser autossuficientes, transformaram seus cidadãos em um exército e construíram uma nova sociedade sem ajuda de ninguém. Eles seriam ainda mais poderosos se a epidemia da varíola não tivesse achatado sua taxa de natalidade e os fizesse tão desesperados por um conjunto de genes novos e procriadores. Talvez eles sejam militaristas, muito programados e um pouco carentes de senso de humor. Eles estão aqui, contudo. E dispostos a enfrentar a Capital.
— Ainda assim, houve tempo suficiente para mostrar-se — eu digo.
— Não foi simples. Eles tiveram que construir uma base rebelde na Capital, obter algum tipo de base organizada nos Distritos — diz ele. — Então, eles precisavam de alguém para colocar a coisa toda em movimento. Eles precisavam de você.
— Precisavam de Peeta também, mas parecem ter se esquecido disso.
Gale escurece a expressão.
— Peeta pode ter feito uma série de danos esta noite. A maioria dos rebeldes vai criticar o que ele disse imediatamente, é claro. Mas há conselhos onde a resistência é mais frágil. O cessar-fogo é uma clara ideia do Presidente Snow. Mas parece tão razoável quando sai da boca de Peeta.
Tenho medo da resposta de Gale, mas eu pergunto de qualquer maneira.
— Por que você acha que ele disse?
— Ele pode ter sido torturado. Ou convencido. Meu palpite é que ele fez algum tipo de acordo para proteger você. Ele estendeu a ideia do cessar-fogo se Snow deixar que ele a apresentasse como uma garota confusa, grávida, que não tinha ideia do que estava acontecendo quando foi feita prisioneira pelos rebeldes. Dessa forma, se os distritos perderem, ainda há uma chance de clemência para você. Se você jogar direito.
Devo ainda olhar perplexa porque Gale oferece a próxima linha muito lentamente.
— Katniss... ele ainda está tentando mantê-la viva.
Para me manter viva? E então eu entendo. Os Jogos ainda estão correndo. Deixamos a arena, mas desde que Peeta e eu não estamos mortos, seu último desejo de preservar a minha vida ainda está de pé. Sua ideia é deixar-me tranquila, segura e continuando presa, enquanto a guerra se desenrola. Então nenhumas das partes tem realmente motivos para me matar.
E Peeta? Se os rebeldes vencerem, será desastroso para ele. Se a Capital vencer, quem sabe? Talvez nós dois vamos ser autorizados a viver – se jogarmos certo – para assistir aos Jogos continuarem...
Imagens lampejam em minha mente: a lança perfurando Rue na arena, Gale pendurado inconsciente no poste de açoitamento, os defuntos espalhados na terra devastada da minha casa. E para quê? Para quê? Quando começo a pensar, lembro-me de outras coisas. Meu primeiro vislumbre de uma rebelião no Distrito 8. Os vencedores entrelaçados de mãos dadas na noite anterior ao Massacre Quaternário. E como não foi por acaso, o meu tiro com a seta no campo de força da arena. Quão perversamente eu queria alojá-la na profundidade do coração do meu inimigo.
Eu pulo, virando uma caixa de uma centena de lápis, dispersando-os em torno do assoalho.
— O que é isso? — Gale pergunta.
— Não pode haver um cessar-fogo. — Eu me inclino para baixo, atrapalhada enquanto enfio as varetas de grafite cinza escuro de volta na caixa. — Nós não podemos voltar atrás.
— Eu sei.
Gale varre um punhado de lápis do chão e arruma-os em perfeito alinhamento.
— Seja qual for a razão que Peeta tinha para dizer essas coisas, ele está errado.
As estúpidas varetas não entram na caixa e eu quebro várias na minha frustração.
— Eu sei. Dá aqui. Você está quebrando-as em pedaços.
Ele puxa a caixa de minhas mãos e a enche com rápidos movimentos concisos.
— Ele não sabe o que eles fizeram para o Doze. Se ele pudesse ver como está a região...— eu começo.
— Katniss, eu não estou discutindo. Se eu pudesse apertar um botão e matar toda a alma viva que trabalha para a Capital, eu faria isso. Sem hesitação. — Ele desliza o último lápis na caixa e fecha a tampa. — A questão é: o que você vai fazer?
Acontece que é a questão que tem me corroído só que nunca tive uma resposta possível. Mas o estratagema de Peeta me levou a reconhecer isso.
O que eu vou fazer?
Eu tomo uma respiração profunda. Meus braços sobem ligeiramente – como se lembrando das asas em preto-e-branco que Cinna me deu – então os descanso ao meu lado.
— Eu vou ser o Mockingjay.
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