quarta-feira, 18 de maio de 2016
Publicado em Madrid em 1605, “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, é composto de 126 capítulos, divididos em duas partes. O livro narra a história de Dom Quixote de La Mancha, um cavaleiro errante que perdeu a razão e, junto com seu fiel escudeiro Sancho Pança, vive lutas imaginárias. Estima-se que tenha vendido entre 500 e 600 milhões de cópias
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Jogos vorazes - A esperança
Jogos vorazes - A esperança Capítulo 2
Jogos vorazes - A esperança
Capítulo 2
Existem aerobarcos da Capital voando para nos atacar no céu? Enquanto viajamos de volta ao Distrito 13, procuro ansiosamente por sinais de um ataque, mas nada nos persegue. Após vários minutos, quando ouço um intercâmbio entre Plutarco e o piloto, confirmando que o espaço aéreo está limpo, começo a relaxar um pouco.
Gale assente para os uivos vindos da minha mochila de caça.
— Agora eu sei por que você tinha que voltar.
— Se houvesse mesmo a possibilidade de sua recuperação.
Despejo a mochila em um banco, onde a criatura repugnante começa um rosnado baixo e profundo da garganta.
— Oh, cale a boca — falo para o saco enquanto afundo no assento acolchoado da janela atrás dele.
Gale se senta ao meu lado.
— Muito ruim lá embaixo?
— Não poderia estar muito pior — respondo.
Eu olho nos olhos dele e vejo a minha própria dor refletida ali. Nossas mãos se encontram, se apegam em uma parte do 12 que o Snow falhou em destruir.
Sentamos em silêncio no resto da viagem para o 13, que leva apenas cerca de 45 minutos. Uma mera viagem de uma semana a pé. Bonnie e Twill, as refugiadas do Distrito 8 que eu encontrei na floresta no inverno passado, não estavam tão longe do seu destino, afinal. Elas aparentemente não o percorreram, no entanto. Quando perguntei sobre elas no 13, ninguém parecia saber de quem eu estava falando. Morreram na floresta, imagino.
Do ar, o 13 parece ser tão alegre como 12. O entulho não está fumegante da forma como a Capital mostra na televisão, mas não há quase nenhuma vida acima da terra. Nos 75 anos desde os Dias Negros – quando foi dito que o 13 foi destruído na guerra entre a Capital e os distritos – quase todas as novas construções eram abaixo da terra.
Já havia uma importante instalação subterrânea por aqui, desenvolvida ao longo dos séculos para ser um refúgio clandestino para os líderes do governo em tempos de guerra ou um último recurso para a humanidade caso viver em cima se tornasse insuportável. O mais importante para as pessoas do 13 era o centro do programa nuclear da Capital para desenvolvimento de armas. Durante os Dias Negros, os rebeldes no 13 forçaram o controle das forças governamentais, testaram seus mísseis nucleares na Capital, e depois chegaram a um acordo: eles iriam fingir estar mortos em troca de serem deixados sozinhos.
A Capital tinha outro arsenal nuclear no oeste, mas não poderia atacar o 13 sem uma invencível retaliação. Foram forçados a aceitar as ofertas do 13. A Capital destruiu o que permaneceu visível da área e cortou todos os acessos para o exterior. Talvez os líderes da Capital pensassem que, sem ajuda, o 13 morreria por conta própria. Ele quase morreu algumas vezes, mas sempre conseguiu superar devido à partilha rigorosa dos recursos, a disciplina árdua e constante vigilância contra quaisquer novos ataques da Capital.
Agora, os cidadãos vivem quase que exclusivamente no subsolo. Você pode ir lá fora para exercícios e para a luz solar, mas apenas em momentos muito específicos na sua programação. Você não pode perder sua programação. Todas as manhãs, deve manter o seu braço direito numa geringonça na parede. É tatuado no interior do seu antebraço a sua programação para o dia em uma tinta roxa doentia.
07:00 - Café da manhã. 7:30 - Deveres na cozinha. 8:30 - Centro de Educação, Sala 17. E assim em diante. A tinta não sai até às 22:00 - Banho. É quando o que a mantém quebra a resistência à água e lavamos programação inteira fora. O toque de recolher às 22:30 é sinal que todos que não estão no turno da noite devem ir para a cama.
No início, quando eu estava tão mal no hospital, eu poderia renunciar a ser impressa. Mas uma vez que me mudei para o Compartimento 307 com minha mãe e irmã, esperava-se que eu começasse com o programa. Exceto para aparecer para as refeições, porém, eu praticamente ignoro as palavras no meu braço. Apenas volto ao nosso compartimento, ando pelo 13 ou durmo em algum lugar escondido. Um duto de ar abandonado. Atrás dos canos de água na lavanderia. Existe um armário no Centro de Educação que é grande porque ninguém parece precisar de material escolar. Eles são tão econômicos com as coisas aqui, o desperdício é praticamente uma atividade criminosa.
Felizmente, as pessoas do 12 nunca foram esbanjadoras. Mas uma vez eu vi Fulvia Cardew amassar uma folha de papel com apenas um par de palavras escritas sobre ela e você teria pensado que ela tinha matado alguém por causa da aparência que ela ficou. Seu rosto ficou vermelho como tomates, fazendo com que as flores de prata incrustadas nas bochechas gordas ficassem ainda mais perceptíveis. O verdadeiro retrato do excesso. Um dos meus poucos prazeres no 13 é assistir um punhado de “rebeldes” mimados da Capital se contorcendo enquanto eles tentam se adaptar aqui.
Não sei quanto tempo vou ser capaz de fugir com o meu completo desprezo pela pontualidade de presença exigida pelos meus anfitriões. Agora, eles me deixam sozinha porque eu estou classificada como mentalmente desorientada – diz isso bem na minha pulseira médica de plástico – e todo mundo tem que tolerar minhas divagações. Mas isso não pode durar para sempre. Nem pode durar sua paciência com a questão do Mockingjay.
Na pista de aterrissagem, Gale e eu andamos por uma série de escadas para o compartimento 307. Poderíamos pegar o elevador, só que me lembra muito o que me levantou para a arena. Estou tendo dificuldade em me ajustar com o subterrâneo. Mas depois do encontro surreal com a rosa, pela primeira vez, a descida faz-me sentir mais segura.
Eu hesitei na porta marcada 307, antecipando as perguntas da minha família.
— O que vou dizer-lhes sobre o Doze? — pergunto a Gale.
— Eu duvido que elas peçam detalhes. Elas o viram queimar. Vão estar preocupadas principalmente sobre como você está lidando com isso — Gale toca minha bochecha.— Tal como eu estou.
Eu pressiono o meu rosto contra a sua mão por um momento.
— Eu vou sobreviver.
Então eu respiro fundo e abro a porta. Minha mãe e minha irmã estão em casa para18:00 - Reflexão, meia hora de tempo de inatividade antes do jantar. Vejo a preocupação em seus rostos enquanto elas tentam medir o meu estado emocional.
Antes que alguém possa perguntar qualquer coisa, jogo minha mochila de caça e torna-se 18:00 - Adoração do Gato. Prim apenas se senta no chão chorando e balançando o terrível Buttercup, que interrompe o seu ronronar apenas para um ocasional silvo para mim. Ele me dá um olhar particularmente orgulhoso quando ela amarra a fita azul em volta do seu pescoço.
Minha mãe abraça a foto do casamento firmemente contra seu peito e depois a coloca, juntamente com o livro de plantas, em nossa gaveta emitida pelo governo. Eu penduro o casaco de meu pai no encosto de uma cadeira. Por um momento, o lugar parece quase como em casa. Então acho que a viagem ao 12 não foi um completo desperdício.
Nós estamos descendo para o refeitório para 18:30 - Jantar, quando o comunicador de Gale começa a apitar. Parece um relógio de grandes dimensões, mas ele recebe mensagens impressas. Receber um comunicador é um privilégio especial que é reservado para aqueles que são importantes para a causa, status que Gale alcançou por seu resgate dos cidadãos do 12.
— Eles precisam de nós dois no Comando — ele anuncia.
Rastejando alguns passos atrás de Gale, tento me recompor antes de eu ser jogada para o que é certo ser outra sessão Mockingjay implacável.
Permaneço na entrada do Comando, a alta tecnologia da sala do conselho de reunião de guerra é completa com computadores falando nas paredes, mapas eletrônicos que mostram os movimentos de tropas em diversos Distritos e uma grande mesa retangular, com painéis de controle que eu não deveria tocar. Ninguém me nota, porém, porque eles estão todos reunidos em uma tela de televisão no final da sala na qual vai ao ar a transmissão da Capital sobre o relógio.
Estou pensando que eu poderia ser capaz de escapar, quando Plutarco, cuja ampla forma física bloqueou a televisão, avista-me e abana com urgência para me juntar a eles. Relutantemente, me movo para a frente, tentando imaginar como poderia ser de interesse para mim. É sempre o mesmo. Filmagem de guerra. Propaganda. Repetição dos atentados ao Distrito 12. Uma mensagem ameaçadora do Presidente Snow. Então, é quase divertido ver Caesar Flickerman, o eterno anfitrião dos Jogos Vorazes, com o rosto pintado e terno brilhante, se preparando para fazer uma entrevista. Até que a câmera se afasta e eu vejo que seu convidado é Peeta.
Um som me escapa. A mesma combinação de suspiro e gemido que vem de ser submerso em água, privado de oxigênio até o ponto da dor. Eu empurro as pessoas de lado até que eu esteja na frente dele, minha mão pousada sobre a tela. Procuro seus olhos para qualquer sinal de dor, qualquer reflexo da agonia, da tortura. Não há nada. Peeta parece saudável ao ponto da robustez. Sua pele está brilhante, impecável, nesse acabamento encorpado. Sua maneira de compor, séria. Eu não consigo conciliar esta imagem com o garoto agredido, sangrando que assombra os meus sonhos.
Caesar se estabelece mais confortavelmente na cadeira em frente à Peeta e dá-lhe um longo olhar.
— Então... Peeta... bem-vindo.
Peeta sorri ligeiramente.
— Aposto que você pensou que tinha feito a sua última entrevista comigo, Caesar.
— Confesso que eu pensei — conta Caesar. — Na noite antes do Massacre Quaternário... bem, quem nunca pensou que não iria vê-lo novamente?
— Não fazia parte do meu plano, isso é certo — Peeta responde com uma carranca.
Caesar se inclina para ele um pouco.
— Acho que ficou claro para todos nós o que seu plano era. Sacrificar-se na arena, para que Katniss Everdeen e seu filho pudessem sobreviver.
— Era isso. Claro e simples. — Os dedos de Peeta traçam o padrão do estofado no braço da cadeira. — Mas outras pessoas tinham planos também.
Sim, outras pessoas tinham planos, eu penso. Peeta adivinhou, então, como os rebeldes nos utilizaram como peões? Como o meu resgate foi organizado desde o início? E, finalmente, como o nosso mentor, Haymitch Abernathy, nos traiu para uma causa que ele fingiu não ter interesse?
No silêncio que se segue, percebo as linhas que se formaram entre as sobrancelhas de Peeta. Ele adivinhou ou disseram a ele. Mas a Capital não o matou nem o castigou. Por certo agora, isso ultrapassou minhas maiores esperanças. Eu ouço em sua totalidade, a solidez de seu corpo e mente. Ele está funcionando para mim como a morfina que eles me deram no hospital para entorpecer a dor da semana passada.
— Por que você não nos conta sobre a última noite na arena? — Sugere Caesar. —Ajude-nos a classificar algumas coisas.
Peeta assente, mas leva o seu tempo falando.
— A última noite... para falar sobre essa última noite... bem, antes de tudo, você tem que imaginar como se sentiria na arena. Era como ser um inseto preso debaixo de uma vasilha cheia de vapor de ar. E tudo ao seu redor, selva... verde e viva e tiquetaqueando. Esse relógio gigante tiquetaqueando a sua vida. A cada hora, prometendo algum novo horror. Você tem que imaginar que nos últimos dois dias, dezesseis pessoas morreram – algumas delas defendendo você. No ritmo em que as coisas estavam indo, os oito últimos seriam mortos pela manhã. Salvo um. O vitorioso. E seu plano é que ele não vai ser você.
Meu corpo explode em suor com a memória. Minha mão desliza para baixo da tela e se pendura ao meu lado. Peeta não precisa de um pincel para pintar as imagens dos Jogos. Ele funciona tão bem com palavras.
— Uma vez que você está na arena, o resto do mundo torna-se muito distante — ele continua. — Todas as pessoas e coisas que você amou ou se preocupava quase deixaram de existir. O céu cor de rosa, os monstros da selva e os tributos que querem seu sangue se tornam sua realidade final, a única que sempre importou. Tão mau quanto isso te faz sentir, você vai ter que matar alguns, porque na arena, você tem apenas um desejo. E é muito caro.
— Custa a sua vida — Caesar concorda.
— Oh, não. Custa muito mais do que a sua vida. Matar pessoas inocentes? — Diz Peeta. — Custa tudo o que você é.
— Tudo o que você é — Caesar repete baixinho.
Um silêncio caiu sobre a sala, e eu posso senti-lo se espalhando por Panem. Uma nação se inclinando em direção às suas telas. Porque ninguém nunca antes falou sobre como é realmente a arena.
Peeta continua.
— Então, você se agarra ao seu desejo. E na última noite, sim, o meu desejo era salvar Katniss. Mas, mesmo sem saber sobre os rebeldes, que não se sentiam bem. Tudo era muito complicado. Eu me encontrei lamentando por não ter fugido com ela no começo do dia, como ela tinha sugerido. Mas não saí com ela naquele momento.
— Você estava muito preso no plano de Beetee para eletrificar o lago de sal — conta César.
— Muito ocupado com os outros jogadores aliados. Eu nunca deveria tê-los deixado nos separar! — Peeta explode. — Foi quando eu a perdi.
— Quando você ficou na árvore do relâmpago, e ela e Johanna Mason levaram a bobina de fio para a água — Caesar esclarece.
— Eu não queria! — Peeta fica vermelho de agitação — mas eu não podia discutir com Beetee sem indicar que estávamos prestes a romper com a aliança. Quando o fio foi cortado, tudo foi apenas loucura. Só me lembro de partes. Tentando encontrá-la. Assistindo Brutus matar Chaff. Matando Brutus sozinho. Eu sei que ela estava chamando meu nome. Então, o raio atingiu a árvore, e o campo de força em torno da arena... explodiu.
— Katniss o explodiu, Peeta — conta César. — Você já viu a filmagem.
— Ela não sabia o que estava fazendo. Nenhum de nós poderia seguir o plano de Beetee. Você pode vê-la tentando descobrir o que fazer com o fio — Peeta responde.
— Tudo bem. Só parece suspeito — Caesar rebate. — Como se ela fizesse parte do plano dos rebeldes o tempo todo.
Peeta fica de pé, inclinando-se para enfrentar Caesar, mãos segurando os braços de sua cadeira de entrevistador.
— Sério? E foi parte de seus planos que Johanna quase a matasse? Que o choque elétrico a paralisasse? Que a bomba acionasse? — Ele está gritando agora. — Ela não sabia, Caesar! Nenhum de nós sabia nada, exceto que estávamos tentando manter-nos mutuamente vivos.
Caesar coloca a mão no peito de Peeta em um gesto que é tanto de autoproteção como conciliador.
— Ok, Peeta, eu acredito em você.
— Ok.
Peeta retira as mãos de Caesar, levantando suas próprias mãos e correndo-as pelos seus cabelos, seus desordenados cuidadosamente decorados cachos loiros. Ele afunda na cadeira, perturbado.
Caesar espera um momento, estudando Peeta.
— E quanto ao seu mentor, Haymitch Abernathy?
O rosto de Peeta endurece.
— Eu não sei o que Haymitch sabia.
— Poderia ter feito parte da conspiração? — Caesar interroga.
— Ele nunca mencionou isso.
Caesar pressiona adiante.
— O que seu coração lhe diz?
— Que eu não deveria ter confiado nele — diz Peeta. — Isso é tudo.
Eu não vi Haymitch desde que o ataquei no aerobarco, deixando longas marcas de arranhão pelo seu rosto. Eu sei que foi ruim para ele aqui. Distrito 13 proíbe estritamente qualquer produção ou consumo de bebidas alcoólicas, e até mesmo o estoque de álcool no hospital é mantido a sete chaves. Finalmente, Haymitch está sendo forçado à sobriedade, sem esconderijos secretos ou misturas caseiras para facilitar a sua transição. Deixaram-no em isolamento até que ele secou, como se ele não fosse considerado apto para exibição pública. Deve ser torturante, mas eu perdi toda a minha simpatia por Haymitch quando percebi que ele tinha nos enganado. Espero que ele esteja assistindo a transmissão da Capital agora, para que ele possa ver que Peeta o rejeitou também.
Caesar dá um tapinha no ombro do Peeta.
— Nós podemos parar agora, se quiser.
— Havia mais para discutir? — Peeta rebate ironicamente.
— Eu ia perguntar a sua opinião sobre a guerra, mas se você estiver muito chateado...— começa Caesar.
— Oh, eu não estou muito chateado para responder a isso. — Peeta respira fundo e olha diretamente para a câmera. — Eu quero todo mundo observando, quer esteja na Capital ou no lado dos rebeldes, para parar por um momento e pensar no que poderia significar essa guerra. Para os seres humanos. Nós quase fomos extintos lutando entre si antes. Agora os nossos números são ainda menores. As nossas condições mais atenuantes. É realmente o que queremos fazer? Matar-nos completamente? Na esperança de que... o quê? Alguma espécie decente herde os resíduos fumegantes da Terra?
— Eu realmente não... Eu não tenho certeza que estou seguindo... — diz Caesar.
— Não podemos lutar entre si, Caesar — Peeta explica. — Não haverá número suficiente de nós restante para continuar. Se todos não depuserem as armas, eu quero dizer, brevemente tudo estará acabado, de qualquer maneira.
— Então... você está pedindo um cessar-fogo? — Caesar pergunta.
— Sim. Eu estou pedindo por um cessar-fogo — Peeta fala cansado. — Agora, por que não pedimos ao guarda para me levar de volta ao meu quarto para que eu possa construir mais cem castelos de cartas?
Caesar vira para a câmera.
— Tudo bem. Eu acho isso conclui tudo. Então, de volta à nossa programação regular.
Música toca, e então há uma mulher lendo uma lista de faltas previstas na Capital – frutas frescas, baterias solares, sabonetes.
Eu a vejo sem prestar atenção, porque sei que todos estarão esperando pela minha reação à entrevista. Mas não há nenhuma maneira de que eu possa processá-la tão rapidamente, a alegria de ver Peeta vivo e ileso, sua defesa da minha inocência em colaborar com os rebeldes e sua cumplicidade inegável com a Capital, agora que ele pediu por um cessar-fogo.
Ah, ele fez soar como se estivesse condenando ambos os lados da guerra. Mas neste momento, com apenas pequenas vitórias para os rebeldes, um cessar-fogo só poderia resultar em um retorno ao nosso estado anterior. Ou pior.
Atrás de mim, posso ouvir as acusações contra a construção de Peeta. As palavrastraidor, mentiroso e inimigo quicam pelas paredes. Desde que eu não posso nem participar da indignação dos rebeldes, nem contra ela, decido que a melhor coisa a fazer é sair. Quando chego à porta, a voz de Coin diz acima das outras.
— Você não foi dispensada, soldado Everdeen.
Um dos homens de Coin coloca uma mão no meu braço. Não é um movimento agressivo, realmente, mas depois da arena, eu reajo defensivamente a qualquer toque estranho. Eu liberto meu braço idiota e corro pelos corredores. Atrás de mim, há o som de uma briga, mas eu não paro. Minha mente faz um inventário rápido dos meus poucos estranhos esconderijos, e eu acabo no almoxarifado, enrolada contra uma caixa de giz.
— Você está vivo — eu sussurro, pressionando as palmas das mãos contra o meu rosto, sentindo o sorriso que é tão amplo que deve parecer uma careta.
Peeta está vivo. E é um traidor. Mas no momento, eu não me importo. Não é o que ele diz, ou quem diz que é, apenas que ele ainda é capaz de falar.
Depois de um tempo, a porta se abre e alguém escorrega para dentro. Gale desliza para baixo ao meu lado, seu sangue escorrendo do nariz.
— O que aconteceu? — pergunto.
— Eu fiquei no caminho de Boggs — ele responde com um encolher de ombros.
Eu uso minha manga para limpar o seu nariz.
— Cuidado!
Eu tento ser gentil. Afagando, não limpando.
— Qual é ele?
— Oh, você sabe. O lacaio mão-direita de Coin. O único que tentou detê-la. — Ele empurra a minha mão. — Desista! Você vai me fazer sangrar até a morte.
A gota se transformou em um fluxo constante. Eu desisto das tentativas de primeiros socorros.
— Você lutou com Boggs?
— Não, só bloqueei a porta quando ele tentou segui-la. Seu cotovelo me pegou no nariz — diz Gale.
— Eles provavelmente vão puni-lo.
— Já puniram.
Ele levanta sua mão. Eu fico olhando para ele sem compreender.
— Coin tomou de volta o meu comunicador.
Eu mordo meu lábio, tentando manter-me séria. Mas isso parece tão ridículo.
— Lamento, soldado Gale Hawthorne.
— Não lamente, soldado Katniss Everdeen. — Ele sorri. — Eu me sentia como um idiota andando com ele de qualquer maneira.
Nós dois começamos a rir.
— Eu acho que foi uma despromoção.
Esta é uma das poucas coisas boas sobre o 13. Obter Gale de volta. Quando a pressão do casamento que a Capital arranjou entre Peeta e eu passou, conseguimos recuperar a nossa amizade. Ele não seguiu adiante, tentando me beijar ou falar de amor. Ou eu tenho estado muito doente, ou ele está disposto a me dar espaço, ou ele sabe que é muito cruel com Peeta nas mãos da Capital. Seja qual for o caso, eu tenho alguém para contar meus segredos de novo.
— Quem são essas pessoas? — pergunto.
— Eles são nós. Se tivéssemos armas nucleares, em vez de uns poucos pedaços de carvão — ele responde.
— Eu gosto de pensar que o Doze não teria abandonado o resto dos rebeldes de volta aos Dias Negros.
— Poderíamos ter. Se fosse assim, renunciar ou começar uma guerra nuclear — diz Gale. — De certa forma, é notável que eles tenham sobrevivido a tudo.
Talvez seja porque eu ainda tenho as cinzas do meu próprio Distrito em meus sapatos, mas pela primeira vez, dou às pessoas do 13 algo que eu retive delas: crédito. Por permanecerem vivos contra todas as probabilidades. Seus primeiros anos de vida devem ter sido terríveis, amontoados nas câmaras abaixo da terra após a sua cidade ser bombardeada até o pó. População dizimada, nenhum possível aliado a quem recorrer por ajuda.
Nos últimos 75 anos, eles aprenderam a ser autossuficientes, transformaram seus cidadãos em um exército e construíram uma nova sociedade sem ajuda de ninguém. Eles seriam ainda mais poderosos se a epidemia da varíola não tivesse achatado sua taxa de natalidade e os fizesse tão desesperados por um conjunto de genes novos e procriadores. Talvez eles sejam militaristas, muito programados e um pouco carentes de senso de humor. Eles estão aqui, contudo. E dispostos a enfrentar a Capital.
— Ainda assim, houve tempo suficiente para mostrar-se — eu digo.
— Não foi simples. Eles tiveram que construir uma base rebelde na Capital, obter algum tipo de base organizada nos Distritos — diz ele. — Então, eles precisavam de alguém para colocar a coisa toda em movimento. Eles precisavam de você.
— Precisavam de Peeta também, mas parecem ter se esquecido disso.
Gale escurece a expressão.
— Peeta pode ter feito uma série de danos esta noite. A maioria dos rebeldes vai criticar o que ele disse imediatamente, é claro. Mas há conselhos onde a resistência é mais frágil. O cessar-fogo é uma clara ideia do Presidente Snow. Mas parece tão razoável quando sai da boca de Peeta.
Tenho medo da resposta de Gale, mas eu pergunto de qualquer maneira.
— Por que você acha que ele disse?
— Ele pode ter sido torturado. Ou convencido. Meu palpite é que ele fez algum tipo de acordo para proteger você. Ele estendeu a ideia do cessar-fogo se Snow deixar que ele a apresentasse como uma garota confusa, grávida, que não tinha ideia do que estava acontecendo quando foi feita prisioneira pelos rebeldes. Dessa forma, se os distritos perderem, ainda há uma chance de clemência para você. Se você jogar direito.
Devo ainda olhar perplexa porque Gale oferece a próxima linha muito lentamente.
— Katniss... ele ainda está tentando mantê-la viva.
Para me manter viva? E então eu entendo. Os Jogos ainda estão correndo. Deixamos a arena, mas desde que Peeta e eu não estamos mortos, seu último desejo de preservar a minha vida ainda está de pé. Sua ideia é deixar-me tranquila, segura e continuando presa, enquanto a guerra se desenrola. Então nenhumas das partes tem realmente motivos para me matar.
E Peeta? Se os rebeldes vencerem, será desastroso para ele. Se a Capital vencer, quem sabe? Talvez nós dois vamos ser autorizados a viver – se jogarmos certo – para assistir aos Jogos continuarem...
Imagens lampejam em minha mente: a lança perfurando Rue na arena, Gale pendurado inconsciente no poste de açoitamento, os defuntos espalhados na terra devastada da minha casa. E para quê? Para quê? Quando começo a pensar, lembro-me de outras coisas. Meu primeiro vislumbre de uma rebelião no Distrito 8. Os vencedores entrelaçados de mãos dadas na noite anterior ao Massacre Quaternário. E como não foi por acaso, o meu tiro com a seta no campo de força da arena. Quão perversamente eu queria alojá-la na profundidade do coração do meu inimigo.
Eu pulo, virando uma caixa de uma centena de lápis, dispersando-os em torno do assoalho.
— O que é isso? — Gale pergunta.
— Não pode haver um cessar-fogo. — Eu me inclino para baixo, atrapalhada enquanto enfio as varetas de grafite cinza escuro de volta na caixa. — Nós não podemos voltar atrás.
— Eu sei.
Gale varre um punhado de lápis do chão e arruma-os em perfeito alinhamento.
— Seja qual for a razão que Peeta tinha para dizer essas coisas, ele está errado.
As estúpidas varetas não entram na caixa e eu quebro várias na minha frustração.
— Eu sei. Dá aqui. Você está quebrando-as em pedaços.
Ele puxa a caixa de minhas mãos e a enche com rápidos movimentos concisos.
— Ele não sabe o que eles fizeram para o Doze. Se ele pudesse ver como está a região...— eu começo.
— Katniss, eu não estou discutindo. Se eu pudesse apertar um botão e matar toda a alma viva que trabalha para a Capital, eu faria isso. Sem hesitação. — Ele desliza o último lápis na caixa e fecha a tampa. — A questão é: o que você vai fazer?
Acontece que é a questão que tem me corroído só que nunca tive uma resposta possível. Mas o estratagema de Peeta me levou a reconhecer isso.
O que eu vou fazer?
Eu tomo uma respiração profunda. Meus braços sobem ligeiramente – como se lembrando das asas em preto-e-branco que Cinna me deu – então os descanso ao meu lado.
— Eu vou ser o Mockingjay.Jogos vorazes a esperanças
Jogos vorazes a esperança Capítulo 1
Jogos vorazes a esperanças
Capítulo 1
Eu olho para os meus sapatos, observando como uma fina camada de cinzas se instala no couro desgastado. Este é o local onde ficava a cama que eu compartilhava com minha irmã, Prim. Ali ficava a mesa da cozinha. Os tijolos da chaminé, que caíram em um monte carbonizado, fornecendo um ponto de referência para o resto da casa. De que outra forma eu poderia me orientar neste mar de cinzas?
Quase nada resta do Distrito 12. Um mês atrás, bombas incendiárias da Capital destruíram as casas dos pobres mineiros de carvão da Costura, as lojas na cidade, até mesmo o Edifício da Justiça. A única área que escapou da extinção foi a Vila dos Vitoriosos. Eu não sei por que exatamente. Talvez para que qualquer um que seja obrigado a vir aqui pelos negócios da Capital tenha algum lugar decente para ficar. Um repórter curioso. A comissão de avaliação da condição das minas de carvão. Um pelotão de Pacificadores para verificar o regresso de refugiados.
Mas ninguém está de volta, exceto eu. E isso é apenas para uma breve visita. As autoridades do Distrito 13 foram contra a minha volta. Elas a viram como um empreendimento caro e inútil, dado que pelo menos uma dúzia de aerobarcos invisíveis está circulando lá em cima para a minha proteção e não há nenhuma informação para ser adquirida. Eu tinha que vir, porém. Tanto que fiz disso uma condição para a minha colaboração com alguns de seus planos.
Finalmente, Plutarco Heavensbee, o Gamemaker Chefe que tinha organizado os rebeldes na Capital, ergueu as mãos.
— Deixem-na ir. É melhor perder um dia hoje do que mês que vem. Talvez um pequeno passeio no Doze seja exatamente o que ela precisa para convencê-la de que estamos do mesmo lado.
Do mesmo lado. Uma dor apunhala minha têmpora esquerda, e eu pressiono a mão contra ela. Exatamente no lugar onde Johanna Mason me bateu com a bobina de fio. O redemoinho de memórias que eu tento separar, o que é verdadeiro e o que é falso. Qual série de acontecimentos me levou a estar em pé, nas ruínas de minha cidade? Isso é difícil, porque os efeitos da concussão que ela me deu não foram totalmente curados e os meus pensamentos ainda tem uma tendência a se desordenarem.
Além disso, os medicamentos que utilizo para controlar a minha dor e meu humor, por vezes, me fazem ver coisas. Eu acho. Eu ainda não estou totalmente convencida de que estava alucinando na noite que o chão do meu quarto de hospital se transformou em um tapete de serpentes se contorcendo.
Eu uso uma técnica que um dos médicos sugeriu. Começo com as coisas mais simples que sei serem verdadeiras e trabalho para o mais complicado. A lista começa a rolar na minha cabeça...
Meu nome é Katniss Everdeen. Eu tenho 17 anos de idade. Meu lar é o Distrito 12. Eu estava nos Jogos Vorazes. Escapei. A Capital me odeia. Peeta foi feito prisioneiro. Ele é considerado morto. O mais provável é que ele está morto. É provavelmente melhor se ele estiver morto...
— Katniss. Devo descer?
A voz do meu melhor amigo Gale chega até mim através do fone de ouvido que os rebeldes insistiram que eu usasse. Ele está em um aerobarco, me observando atentamente, pronto para precipitar-se se alguma coisa der errado.
Percebo que estou agachada agora, com os cotovelos nas coxas, cabeça apoiada entre as mãos. Eu devo parecer no limite de algum tipo de colapso. Isso não pode acontecer. Não quando eles finalmente me retiraram da medicação.
Eu me endireito e recuso a sua oferta.
— Não. Eu estou bem.
Para reforçar isso, começo a andar para longe da minha antiga casa e em direção à cidade. Gale pediu para ser deixado descer no 12 comigo, mas não forçou a barra quando recusei a sua companhia. Ele entende que eu não quero ninguém comigo hoje. Nem mesmo ele. Alguns passeios você tem que fazer sozinha.
O verão foi muito quente e seco como um osso. Não houve quase nenhuma chuva para espalhar os montes de cinzas deixados pelo ataque. Elas mudavam aqui e ali, em reação aos meus passos. Nenhuma brisa para dispersá-las.
Mantenho meus olhos no que eu lembro ser a estrada, porque quando desembarquei pela primeira vez no prado, eu não estava atenta e andei para a direita por cima de uma pedra. Só que não era uma pedra – era o crânio de alguém. Ele capotou, virou para cima e caiu, e durante muito tempo eu não consegui parar de olhar os dentes, perguntando de quem eles eram, pensando em como os meus pareceriam, provavelmente da mesma forma em circunstâncias semelhantes.
Sigo a estrada fora de uso, mas é uma má escolha, porque está cheia de restos daqueles que tentavam fugir. Alguns foram totalmente incinerados. Mas outros, provavelmente, superados pela fumaça, escaparam do pior das chamas e agora estão fedendo em vários estados de decomposição, carniça para os catadores, coberta por moscas.
Eu matei você, penso enquanto passo uma pilha. E você. E você. Porque eu matei mesmo. Foi minha flecha, apontada para uma brecha no campo de força em torno da arena, que trouxe esta explosão de retribuição. Que enviou todo o país de Panem ao caos.
Na minha cabeça ouço as palavras do Presidente Snow, falando na manhã em que eu estava começando o Tour da Vitória: “Katniss Everdeen, a garota em chamas, que forneceu uma faísca que, abandonada, pode crescer para um inferno que destrói Panem.” Acontece que ele não estava exagerando, ou simplesmente tentando me assustar. Ele estava, talvez, realmente tentando atrair a minha ajuda. Mas eu já tinha feito algo que estava em movimento, e eu não tinha capacidade de controlar.
Queimando. Ainda queimando, eu penso entorpecida.
Os incêndios soltam fumaça das minas de carvão negras ao longe. Não há ninguém para cuidar, no entanto. Mais de noventa por cento da população do distrito está morta. Os mais ou menos oitocentos restantes são refugiados no Distrito 13 – que, até onde sei, é a mesma coisa que estar desalojado para sempre.
Sei que não se devo pensar nisso; sei que eu deveria estar grata pela forma como temos sido bem-vindos. Doentes, feridos, famintos e de mãos vazias. Ainda assim, eu nunca pude contornar o fato de que o Distrito 13 colaborou para a destruição do 12. Isso não me exime de culpa, há uma abundância de culpa ao redor. Mas sem eles, eu não teria sido parte de uma grande conspiração para derrubar a Capital ou teria os meios para fazê-lo.
Os cidadãos do Distrito 12 não tiveram nenhum movimento próprio de resistência organizada. Não declararam nada disto. Eles só tiveram o azar de me ter. Alguns sobreviventes acharam que era boa sorte, porém, se livraram do Distrito 12 no final. Para escapar da fome e da opressão sem fim, das minas perigosas, do chicote do nosso último Pacificador Chefe, Romulus Thread. Todos viram ter um novo lar como uma maravilha, pois, até pouco tempo atrás, nem sequer sabíamos que o Distrito 13 ainda existia.
O crédito para a fuga dos sobreviventes pousou nos ombros de Gale, embora ele seja relutante em aceitá-lo. Assim que o Massacre Quaternário acabou, logo que eu tinha sido retirada da arena, a eletricidade do Distrito 12 foi cortada, a televisão ficou preta, e a Costura ficou tão silenciosa que as pessoas podiam ouvir os batimentos cardíacos uns dos outros. Ninguém fez nada para protestar ou celebrar o que tinha acontecido na arena. No entanto, dentro de quinze minutos, o céu estava cheio de aerobarcos e as bombas choveram.
Foi Gale que pensou na Campina, um dos poucos lugares não preenchidos com as velhas casas de madeira embutidas com pó de carvão. Ele agrupou aqueles que conseguiu em sua direção, inclusive minha mãe e Prim. Formou o grupo que arrancou a cerca – agora apenas um obstáculo inofensivo de correntes de argolas, com a eletricidade desligada – e levou o povo para a floresta. Levou-os para o único lugar que ele poderia pensar, o lago que meu pai tinha me mostrado quando era criança. E foi de lá que assistiram as chamas distantes comerem tudo que conheciam do mundo.
Ao amanhecer, os bombardeios há muito terminados, o fogo estava morrendo, e os sobreviventes se reuniram. Minha mãe e Prim criaram uma área médica para os feridos e tentaram tratá-los com tudo o que podiam recolher dos bosques. Gale tinha dois conjuntos de arco e flechas, uma faca de caça, uma rede de pesca e mais de oitocentas pessoas aterrorizadas para alimentar. Com a ajuda daqueles que eram fisicamente capazes, eles conseguiram por três dias.
Foi quando um aerobarco inesperadamente chegou para evacuá-los para o Distrito 13, onde havia espaço mais do que suficiente, compartimentos branco vivo, cheio de roupas, três refeições por dia. Os compartimentos tinham a desvantagem de serem subterrâneos, a roupa era idêntica e a comida era relativamente de mau gosto, mas para os refugiados do 12 estas eram as considerações de menor importância. Eles estavam seguros. Estavam sendo tratados. Estavam vivos e acolhidos com entusiasmo.
Este entusiasmo foi interpretado como gentileza. Mas um homem chamado Dalton, um dos refugiados do distrito 10 que tinha ido a pé até o 13 alguns anos atrás, me segredou o motivo real.
— Eles precisam de você. Eu. Eles precisam de todos nós. Algum tempo atrás, houve uma espécie de epidemia de varíola que matou um monte deles e deixou muitos mais inférteis. Novos reprodutores. Assim é como eles nos veem.
No 10, ele trabalhou em uma das fazendas de corte, a manutenção da diversidade genética do rebanho com a implantação de embriões de vacas longamente congelados. Ele está provavelmente certo acerca do 13, pois lá não parecem ter crianças suficientes ao redor. Mas e daí? Nós não estamos sendo mantidos em celas, estamos sendo treinados para o trabalho, as crianças estão sendo educadas. A quem tem mais de quatorze foram dadas entradas iguais nas fileiras do exército e são abordados respeitosamente como “soldado”. A todos os refugiados avulsos foi concedida automaticamente a cidadania por parte das autoridades depois dos 13 anos.
Ainda assim, eu os odeio. Mas, é claro, eu odeio quase todo mundo agora. Eu mesma mais que ninguém.
A superfície endurece debaixo dos meus pés, e sob o tapete de cinzas, sinto as pedras do calçamento da praça. Ao redor do perímetro está uma fronteira rasa de lixo onde as lojas estavam. Um amontoado de escombros enegrecidos substituiu o Edifício da Justiça.
Vou a pé para o local próximo à propriedade da padaria da família de Peeta. Quase nada sobrou a não ser um amontoado derretido do forno. Os pais de Peeta, seus dois irmãos mais velhos – nenhum deles chegou ao 13. Menos de uma dezena dos que passavam pelo Distrito 12 prosperaram em escapar do fogo. Peeta não teria nada se voltasse para casa, de qualquer maneira. Exceto eu...
Volto da padaria e esbarro em alguma coisa, perco o equilíbrio, e encontro-me sentada em um pedaço de metal aquecido pelo sol. Imagino o que poderia ter sido, e em seguida me lembro das recentes renovações da praça. Os suportes, os postos de açoitamento, e isso, os restos da forca.
Ruim. Isso é ruim. Traz o dilúvio de imagens que me atormentam, acordada ou dormindo. Peeta sendo torturado – afogado, queimado, dilacerado, eletrocutado, mutilado, espancado – enquanto a Capital tenta obter informações sobre a rebelião que ele não sabe.
Aperto os olhos fechados e tento chegar até ele através das centenas e centenas de quilômetros, para enviar os meus pensamentos em sua mente, para que ele saiba que não está sozinho. Mas ele está. E eu não posso ajudá-lo.
Estou correndo. Praça afora e para o único lugar que o fogo não destruiu. Eu passo os destroços da casa do prefeito, onde minha amiga Madge viveu. Nenhuma palavra da sua família ou dela. Eles foram evacuados para a Capital, em virtude da situação de seu pai, ou partiram para as chamas? Cinzas elevam-se em torno de mim, e eu puxo a barra da minha camisa por cima da minha boca. Não estou me perguntando o que eu respiro, mas quem ameaça asfixiar-me.
A grama foi queimada e a neve cinza caiu aqui também, mas as doze casas finas da Vila dos Vitoriosos estão ilesas. Examino a casa onde morei durante o ano passado, entro e fecho a porta atrás de mim. O lugar parece intocado. Limpo. Estranhamente quieto. Por que eu voltei para o 12? Como pode esta visita me ajudar a responder a pergunta de que eu não posso escapar?
— O que vou fazer? — sussurro para as paredes. Porque eu realmente não sei.
As pessoas ficam falando de mim, falando, falando, falando. Plutarco Heavensbee. Sua assistente de cálculo, Fulvia Cardew. Uma mistura de líderes distritais. Autoridades militares.
Mas não Alma Coin, a presidente do 13, que apenas observa. Ela tem cerca de cinquenta anos, com cabelos grisalhos que caem em uma ininterrupta superfície até os ombros.
Estou um pouco fascinada por seus cabelos, já que são tão uniformes, assim, sem nenhuma falha, um fio, até mesmo termina uma divisão. Seus olhos são cinzentos, mas não como aqueles das pessoas da Costura. Eles são muito pálidos, como se quase toda a cor fosse sugada para fora deles. A cor da neve que deseja se derreter.
O que eles querem é que eu realmente assuma o papel que eles projetaram para mim. O símbolo da revolução. O Mockingjay. Não é suficiente o que fiz no passado, desafiando a Capital nos Jogos, proporcionando um estopim. Devo agora me tornar a atual líder, o rosto, a voz, a personificação da revolução. A pessoa que os distritos – a maioria dos quais estão agora em guerra aberta com a Capital – podem contar para incendiar o caminho para a vitória.
Eu não vou ter que fazer isso sozinha. Eles têm toda uma equipe de pessoas para ajudar: me vestir, escrever meus discursos, orquestrar minhas aparições – como se issonão soasse terrivelmente familiar – e tudo o que tenho a fazer é desempenhar o meu papel. Às vezes eu os ouço e às vezes só vejo a linha perfeita do cabelo de Coin e tento decidir se é uma peruca. Eventualmente, eu saio da sala porque a minha cabeça começa a doer ou está na hora de comer ou que se eu não conseguir ar eu poderia começar a gritar. Eu não me incomodo em dizer nada. Eu simplesmente me levanto e caminho para fora.
Ontem à tarde, quando a porta se fechava atrás de mim, ouvi Coin dizer:
— Eu lhe disse que deveria ter salvado o garoto primeiro.
Ela estava falando de Peeta. Eu não poderia concordar mais. Ele teria sido um excelente porta-voz.
E quem é que eles tiraram da arena em vez disso? Eu, que não vou cooperar. Beetee, um velho inventor do 3 que raramente vejo, porque ele foi levado para o desenvolvimento de armas no minuto em que pôde se sentar. Literalmente, transformaram, o leito hospitalar em uma área ultrassecreta e agora ele aparece apenas ocasionalmente para as refeições. Ele é muito inteligente e muito disposto a ajudar na causa, mas não é realmente um material incendiário.
Então há Finnick Odair, o símbolo sexual da zona de pesca, que manteve Peeta vivo na arena quando eu não pude. Eles querem transformar Finnick em um líder rebelde também, mas primeiro terão que consegui-lo deixar acordado por mais de cinco minutos. Mesmo quando ele está consciente, você tem que dizer tudo para ele três vezes para chegar até seu cérebro. Os médicos dizem que é por causa do choque elétrico que ele recebeu na área, mas eu sei que é muito mais complicado do que isso. Sei que Finnick não pode incidir sobre qualquer coisa no 13, porque ele está tentando imaginar o que está acontecendo na Capital com Annie, a menina louca do seu distrito, a única pessoa na Terra que ele ama.
Apesar das sérias reservas, tive que perdoar Finnick por seu papel na conspiração que me aterrou aqui. Ele, pelo menos, tem alguma ideia do que eu estou passando. E é preciso muita energia para ficar zangado com alguém que chora tanto.
Eu me movo através do andar de baixo em pés de caçadora, relutante em fazer qualquer som. Pego algumas lembranças: uma foto dos meus pais no dia do casamento, uma fita azul de cabelo para Prim, o livro da família de plantas medicinais e comestíveis. O livro fica aberto em uma página com flores amarelas e eu fecho-a rapidamente, porque era a que Peeta pintou.
O que eu vou fazer?
Existe algum sentido em se fazer alguma coisa? Minha mãe, minha irmã e os familiares do Gale estão finalmente seguros. Quanto ao resto do 12, as pessoas estão mortas, o que é irreversível, ou protegidas no 13. Isso deixa os rebeldes nos distritos. É claro, eu odeio a Capital, mas não tenho confiança de que eu ser o Mockingjay irá beneficiar aqueles que estão tentando derrubá-la. Como posso ajudar os distritos se cada vez que faço um movimento resulta em sofrimento e perda de vida? O velho homem baleado no Distrito 11 por assobiar. A repressão no 12 depois que intervim nas chicotadas de Gale. Meu estilista, Cinna, sendo arrastado, sangrando e inconsciente, da sala de lançamento antes dos Jogos. Fontes de Plutarco acreditam que ele foi morto durante um interrogatório. O brilhante, enigmático, amável Cinna está morto por minha causa.
Empurro o pensamento para longe, porque é muito incrivelmente doloroso estendê-lo sem perder totalmente a minha frágil esperança na situação.
O que eu vou fazer?
Tornar-me um Mockingjay... poderia algum bem possivelmente compensar os danos? Em quem posso confiar para responder essa pergunta? Certamente não nas pessoas do 13. Penso, agora que minha família e Gale estão fora de perigo, eu poderia fugir. Exceto por uma peça inacabada do negócio. Peeta. Se eu soubesse com certeza que ele estava morto, eu poderia simplesmente desaparecer na floresta e nunca olhar para trás. Mas até que eu saiba, estou presa.
Eu me viro ao som de um assobio. Na porta da cozinha, costas arqueadas, orelhas caídas, ergue-se o mais feio gato macho no mundo.
— Buttercup — eu digo.
Milhares de pessoas estão mortas, mas ele sobreviveu e até parece bem alimentado. Com o quê? Ele pode entrar e sair da casa por uma janela sempre entreaberta na despensa. Ele deve ter comido ratos do campo. Me recuso a considerar a alternativa.
Eu agacho-me e estendo a mão.
— Venha cá, menino.
Provavelmente não. Ele está irritado com o seu abandono. Além disso, eu não estou oferecendo comida, e minha capacidade de fornecer sobras sempre foi minha principal qualidade redentora para ele. Por um tempo, quando a gente se encontrava na casa velha porque ambos não gostavam dessa nova, parecia estarmos ligados um pouco. Isso claramente acabou. Ele pisca os desagradáveis olhos amarelos.
— Quer ver Prim? — pergunto.
O nome dela chama sua atenção. Além de seu próprio nome, é a única palavra que significa alguma coisa para ele. Ele dá um miado enferrujado e se aproxima de mim. Eu o pego, acariciando seus pelos, em seguida, vou até o armário e tiro a minha mochila de caça e sem a menor cerimônia o jogo para dentro. Não há outro jeito de eu ser capaz de levá-lo no aerobarco, e ele significa o mundo para a minha irmã. Sua cabra, Lady, um animal com valor real, infelizmente não fez uma aparição.
No meu fone de ouvido, ouço a voz de Gale que está me dizendo que devemos voltar. Além da mochila de caça, lembrei-me de mais uma coisa que eu quero. Lanço a alça da mochila sobre as costas de uma cadeira e subo os degraus para o meu quarto. Dentro do armário pego a jaqueta de caça do meu pai. Antes do Massacre, eu trouxe lá da casa velha, pensando que a sua presença poderia servir de conforto para minha mãe e irmã quando eu estivesse morta. Graças a Deus fiz isso, ou seriam cinzas agora.
O couro macio me acalma e por um momento sou tranquilizada pelas memórias das horas envolvidas nele. Então, inexplicavelmente, minhas mãos começam a suar. Uma sensação estranha se arrasta em volta do meu pescoço. Eu me viro para enfrentar o quarto e encontro-o vazio. Meticuloso. Tudo em seu lugar. Não há nenhum som de alarme para mim. O que é, então?
Meu nariz se contrai. É o cheiro. Sufocante e artificial. Alguns caules e pétalas brancas em um vaso de flores secas em meu cômodo. Eu abordo-o com passos cautelosos. Ali, inteira, mas obscurecida por seus primos preservados, está uma doce rosa branca. Perfeita. Com os últimos espinhos e pétalas de seda.
E eu sei imediatamente que foi enviada para mim.
Presidente Snow.
Quando eu começo sentir o fedor, me viro e saio rapidamente. Há quanto tempo ele esteve aqui? Um dia? Uma hora? Os rebeldes fizeram uma varredura de segurança da Vila dos Vitoriosos antes que eu estivesse liberada para vir aqui, a verificação de explosivos, defeitos, nada de incomum. Mas talvez a rosa não parecesse digna de nota para eles. Só para mim.
Lá embaixo, puxo a mochila de caça fora da cadeira, batendo-a no chão até que eu me lembro de que está ocupada. No gramado, freneticamente sinalizo para o aerobarco enquanto Buttercup se agita dentro da mochila. Eu o cutuco com o cotovelo, mas isso só o enfurece. Um aerobarco se materializa e uma escada desce. Eu subo e a corrente me congela até que eu chegue a bordo.
Gale me ajuda na escada.
— Está tudo bem?
— Sim — respondo, enxugando o suor do meu rosto com a manga.
Ele me deixou uma rosa! Eu quero gritar, mas não é informação que tenho certeza que eu deveria compartilhar com alguém como Plutarco olhando. Primeiro de tudo, porque vai me fazer parecer louca. Como se eu tivesse imaginado, o que é perfeitamente possível, ou eu estivesse exagerando, o que vai me comprar uma viagem de volta para a terra dos sonhos induzida por drogas do qual estou tentando tanto escapar.
Ninguém vai compreender que não é apenas uma flor, nem mesmo apenas uma flor do Presidente Snow, mas uma promessa de vingança – porque ninguém sentou-se no escritório com ele quando ele me ameaçou antes do Tour da Vitória.
Posicionada na minha cômoda, a rosa branca como a neve é uma mensagem pessoal para mim. Ela fala de negócios inacabados. Ela sussurra, Eu posso te encontrar. Eu posso chegar até você. Talvez eu esteja vendo você agora.Jogos vorazes a esperança
Jogos vorazes a esperança
Jogos vorazes a esperança
Depois de sobreviver duas vezes à crueldade de uma arena projetada para destruí-la, Katniss acreditava que não precisaria mais de lutar. Mas as regras do jogo mudaram: com a chegada dos rebeldes do lendário Distrito 13, enfim é possível organizar uma resistência. Começou a revolução. A coragem de Katniss nos jogos fez nascer a esperança em um país disposto a fazer de tudo para se livrar da opressão. E agora, contra a própria vontade, ela precisa assumir seu lugar como símbolo da causa rebelde. Ela precisa virar o Mockingjay. O sucesso da revolução dependerá de Katniss aceitar ou não essa responsabilidade. Será que vale a pena colocar sua família em risco novamente? Será que as vidas de Peeta e Gale serão os tributos exigidos nessa nova guerra? Acompanhe Katniss até o fim, numa jornada ao lado mais obscuro da alma humana, em uma luta contra a opressão e a favor da esperança.
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